Justiça ou vingança?

 

Oréstia, de Ésquilo

De tempos em tempos as nações são abaladas por crimes de grade repercussão. Nos dias de hoje, o extraordinário avanço dos meios de comunicação permite que essas notícias cheguem a todos com muito mais rapidez. Quase que em uníssono escutamos o brado de revolta: justiça!

Mas será esse realmente o nosso desejo? Confesso que na maioria das vezes que escuto a palavra justiça, principalmente quando bradada com fúria, sempre péssima conselheira, algo dentro de mim se revolta e tenta me indicar que o termo justiça está incorreto, o que as pessoas realmente querem é vingança. Muitas vezes um termo se confunde com o outro, mas quando pedimos a condenação de um criminoso , cujo crime nos revoltou, o que queremos realmente? Vingança ou justiça? Justiça ou vingança? Ou ambas?

Corifeu: Pede que um deus ou algum mortal venha enfrentá-los!

Electra: Queres dizer como juiz, ou vingador?

Corifeu: Fala bem claro: alguém que mate quem matou!

Electra percebe o problema, afinal o Deus Apolo queria que Orestes matasse a própria mãe por justiça ou vingança? Corifeu afasta a dúvida pois para ele não importa, desde que seja cometido o ato.

Este é o grande tema da trilogia de peças de Ésquilo que ficou conhecida como Oréstia: a confusão entre vingança e justiça. Como interromper um círculo que se inicia quando a vingança passa a dominar o coração dos homens e cada ato serve de causa para um outro ato?  A vingança gera vingança.

A tragédia começa quando Agamenón retorna depois de liderar o exército grego na vitoriosa campanha de Tróia, na peça que leva o nome do herói. Através do coro, ficamos sabendo que na viagem para a Tróia, atravessando dificuldades aparentemente insuperáveis, o rei é convencido que somente o sacrifício da própria filha poderia aplacar a ira dos Deuses e abrir caminho para a vitória grega. É o que acaba acontecendo em uma das passagens mais tristes e belas do teatro grego, a do sacrifício de Ifigênia.

Depois de aceito o jugo da necessidade

o rei fez sua escolha e admitiu

o sacrifício, vilania inominável;

a decisão foi obra de um instante;

iria consumar-se a máxima ousadia.

A decepção funesta arrasta os homens

a insólitos extremos de temeridade;

é conselheira péssima e é fonte

inesgotável de amarguras e sofrimentos.

Após a vitória, depois de dez anos de campanha, Agamenón é recebido em júbilo pela rainha Clitemnestra, que estende um tapete púrpura para homenageá-lo. Entretanto os discursos da rainha tinham duplo sentido, assim como tapete que na verdade simbolizaria o próprio caminho para a morte.

Ésquilo não mostra o que acontece dentro do palácio. O assassinato de Agamenón é narrado por Cassandra, a princesa troiana que fora dada ao rei como escrava. Do lado de fora do palácio, ela tem a visão de Clitemnestra matando Agamenón, assim como se sua própria morte. A troiana entra no palácio e enfrenta seu destino, morrendo ao lado de seu senhor.

Diante do coro de sábios, Clitemnestra se defende que seu crime fora na verdade uma questão de justiça pela morte da própria filha em holocausto.

Mas seria o desejo de justiça que moveria a rainha? Ou se trataria de vingança? A situação se complica quando se revela que teve um cúmplice, Egisto, seu amante,  que buscava vingança contra Agamenón por um ato que o pai do rei teria cometido contra o pai do próprio Egisto. É a vingança atravessando gerações; ou seria justiça? Ou nenhum deles? Afinal, Clitemnestra teria motivos suficientes para desejar tirar Agamenón de sua vida independente de vingança ou justiça.

A peça termina com os amantes assumindo de fato o trono e iniciando um período de opressão, subjugando o próprio conselho de anciões.

A peça Coéforas narra a estória de Orestes, que retorna escondido após um período de exílio.

A natureza de Clitemnestra começa a ficar mais evidente. Orestes está banido e sua irmã, Electra, passou a ser uma escrava no palácio real. A rainha teme a vingança do filho e atormentada por sonhos, procura fazer oferendas para aplacar os deuses. Ésquilo aproveita para colocar uma questão sempre atual.  O problema do assassinato é que ele não pode ser desfeito, “de fato, que reparação existe para o sangue caído sobre a terra?” O próprio coro responde:

Quando o sangue é sorvido pela terra

nutriz de todos, até saturá-la,

ao menos um coágulo perdura

intacto e nunca se dissolverá,

um dia sairá dele a vingança.

Corifeu coloca para Electra a questão da impropriedade do reinado de Clitemnestra e Egisto; alguém deveria enfrentá-los. É nesse momento que Eléctra retruca “como juiz, ou como vingador?“.

Oreste assume o fardo. Vingança ou justiça? O que move Orestes? Neste caso, a postura dele em relação a mãe é bem diferente de Clitemnestra em relação a Agamenón. Desde o princípio Orestes tem a missão como um fardo, que ninguém poderia cumprir em seu lugar; pior, é avisado que seria punido por Apolo se não a executasse. Não havia justiça que pudesse alcançar a rainha, cabeu-lhe o papel de verdugo.

Orestes penetra no palácio disfarçado de um mensageiro que traz a notícia de sua própria morte.  Clitemnestra _  que não o reconhece _  o recebe. A rainha lamenta, mas uma ama depois confessa que era tudo uma simulação: “seus olhos, todavia, ocultam um sorriso, pois tudo para ela se encaminha bem.” A rainha realmente desejava a morte do próprio filho para se sentir segura.

Ele termina por cumprir seu destino matando a mãe e o amante. Parte novamente para o exílio, o que não deixa de ser uma evidência em sua defesa. Nenhum ganho pessoal almejou com seus atos, ao contrário, fugiu como um pária.

Coéferas termina com o coro chamando atenção para o fato da vingança ser um processo sem fim, pois gera sempre a necessidade de uma nova vingança.

Onde se deterá, ou findará,

a Ira precursora da vingança?

Eumênides é a peça que conclui a trilogia. Significa “Deusas Benévolas”que refere-se às personagens principais, as fúrias. Antigas deusas, representam o ressentimento e desejo de vingança pelos crimes consanguíneos. Elas investem contra Orestes, que está sob a proteção de Apolo, estabelecendo um conflito entre os deuses antigos e novos. Atenas surge como personificação da sabedoria, colocando-se como mediadora.

Para resolver a questão, ela estabelece um julgamento, convocando juízes mortais. Orestes e as fúrias devem apresentar seus argumentos, testemunhos e provas para que o juri possa deliberar. Diante das evidências, os juizes se dividem e o resultado é o empate. Cabe a Atenas desempatar, e daí surge a expressão voto de minerva, nome romano da deusa. Em caso de empate em uma questão criminal, a prudência recomenda que se vote a favor do réu, por entender que a questão está dividida demais para condenar alguém, tradição que existe hoje em muitos tribunais.

As fúrias não se conformam com o resultado, mas com imensa sabedoria Atenas consegue pacificá-las e trazê-las para sua própria proteção. O ciclo de vingança chegara ao fim e isso era o mais importante.

Deixado por sua própria conta, o processo de vingança não tem fim pois cada morte gera a necessidade de uma nova vingança para aplacar a ira de um dos lados ofendidos. Apenas com a mediação de uma parte neutra, um tribunal, esse caminho poderia ser interrompido. Este talvez seja um dos papéis da justiça nas relações humanas, colocar um fim em conflitos que atravessam gerações.

Muitas vezes a justiça e a vingança se confundem; torna-se uma tarefa quase impossível separá-las. Talvez haja casos que não importa a diferença,  as coisas ocorrerão juntas. Em algum momento a reciprocidade, esse conceito que pode ser perigoso, deve ser abrandada. Para Ésquilo, esse abrandamento era um papel do tribunal, que deixava de devolver a morte com a morte.

As três peças de Orestes continua a fascinar homens de todas as épocas pois é um assunto sempre atual, próprio de nossa natureza falha. Sua linguagem é altamente poética, carregada de simbolismos, como é próprio das grandes tragédias gregas, colocando para o espectador a tarefa de interpretar e refletir sobre nossa própria existência.

Vingança ou justiça? O que realmente bradamos quando queremos ver a condenação de um criminoso, especialmente com a morte?

 

Um comentário sobre “Justiça ou vingança?

  1. para esse dilema talvez não exista uma resposta cabal…porem, há um aspecto á refletir: se, de uma maneira ou de outra, não houver condenação, só pode haver uma definição para tal fato: injustiça.

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