Rerum Novarum, a doutrina social da Igreja Católica

Rerum Novarum foi a encíclica que apresentou a doutrina social da Igreja Católica para a modernidade, divulgada em 1891. Mais do que uma visão econômica, tratava-se de uma visão abrangente dos novos desafios que os principais atores da sociedade moderna teriam que superar para promover uma sociedade mais justa e harmônica.

Antecedentes

A Europa, particularmente a Inglaterra, vivia a revolução industrial que teve como uma de suas características a transição do comércio feudal das cidades, baseado nas cooperativas de artesãos, para as fábricas. O resultado foi as condições precárias e indignas dos trabalhadores, explorado por patrões que tinham como parâmetro pagar o menor salário possível e obter o máximo da mão de obra abundante que migrava do campo para as cidades. Para sobreviver o operário estava disposto a aceitar qualquer condição.

Uma das respostas a este quadro foi o socialismo, conforme proposto por Karl Marx. A história do mundo era a da luta de classes. Operários e patrões lutariam entre si até a inevitável vitória dos primeiros, que se tornariam mais numerosos e fortes quanto mais fossem oprimidos pela burguesia. Desta forma, os patrões criavam o monstro que terminaria por vencê-los.

Iniciou-se um período de intensa agitação política, com muita revolta e formação dos sindicatos, que muitas vezes obedeciam à política marxista mais do que os interesses do próprio trabalhador. É importante entender que na concepção marxista a condição do trabalhador teria que se deteriorar até o limite para força-lo à revolta. Desta forma muitos sindicatos faziam jogo duplo, afirmavam lutar pela melhoria das condições dos trabalhadores mas queriam na verdade o oposto, criar mecanismos para aumentar ainda mais a revolta contra os patrões.

Dentro desta bagunça e quadro de revolta social, Leão XIII fez por bem distribuir uma carta encíclica aos bispos da Igreja para orientá-los sobre a posição do vaticano sobre o assunto.

Assim nasceu a Rerum Novarum (sobre Novas Coisas) que teve o subtítulo de Sobre as Condições dos Operários.

Mensagem Principal

A preocupação da Igreja era com a substituição das cooperativas de operários pelas fábricas modernas. Desta forma, havia uma concentração da propriedade nas mãos de poucos e a distribuição de riquezas era uma consequência da perda da autonomia dos trabalhadores. Ao invés de tratar das riquezas, a encíclica faz uma defesa enfática da distribuição da propriedade. O salário não podia ser um instrumento de opressão e escravidão para o homem.

A encíclica rejeita o dogma da luta de classes marxista e defende o oposto, a conciliação de classes. Tratando de trabalho e capital, ambos precisam um do outro, ou seja, o capital precisa do trabalho e o trabalho precisa do capital. O patrão precisa dos trabalhadores e os trabalhadores precisam dos patrões. Desta forma, há direitos e deveres em ambas as partes.

Estes direitos e deveres só encontram seu verdadeiro alcance com base na ética e moral religiosa, no espírito de fraternidade que pode ser resumida na virtude da caridade.

Propriedade Privada

A Igreja não só afirma o direito à propriedade como o coloca com um direito natural. Está fora do alcance da legislação dos homens e qualquer ação para limitá-lo é uma violência contra a dignidade do ser humano.

A encíclica tinha como foco da propriedade privada a posse da terra e do trabalho. Através do segundo, o operário buscava conseguir o primeiro, sonho da época. Trabalhar nas fábricas seria uma etapa provisória, onde se venderia o trabalho para obter a recompensa da posse de uma propriedade.

O salário vexaminoso impedia a realização deste sonho e por isso se constituía de uma violência contra a lei natural. Um patrão movido pela ética cristã tinha a obrigação de pagar um bom salário a seu trabalhador, possibilitando-o guardar os recursos para ter sua propriedade.

A igreja buscava portanto a pulverização da propriedade, a sua maior distribuição pelos homens. O que valia também para o capital.

O Socialismo

A solução socialista, como descrita na encíclica, era uma falácia por diversas razões. Primeiro porque abolia a propriedade privada o que prejudicaria o próprio operário que não seria mais dono de seu próprio trabalho. Sem o direito à propriedade ficaria indefeso diante dos novos senhores de um mundo aparentemente sem propriedade.

essa conversão de propriedade particular em propriedade coletiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição de seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança de engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem a sua situação.

Outra razão para o repúdio ao socialismo era sua opção pela violência e o confronto. Nada de bom pode surgir de uma doutrina que desagrega, que coloca irmãos contra irmãos, que tem a morte como forma de atuação.

O socialismo na verdade utilizava as massas populares para atingir objetivos particulares de seus líderes políticos, muitas vezes ocultos e por isso deveria ser combatido como solução para os problemas da humanidade.

Uso comum

Outro ponto forte da encíclica é o parodoxo entre a propriedade privada e seu uso social. O homem tem o direito natural de ter a posse de um bem, mas tem o dever moral de usá-la com uma finalidade social.

É bom ter em mente que dever moral não pode ser imposto por autoridades e legisladores. O homem precisa do livre arbítrio para escolher a coisa certa e nessa escolha está a promessa da redenção das almas. Apenas uma ética superior, voltada para Deus, pode fazer o homem colocar o bem maior sobre o seu bem particular.

Nesse contexto, a encíclica reafirma o papel da família como a pequena sociedade por natureza. Ela procede a própria idéia de sociedade civil e por isso mesmo deve ser protegida da intromissão do poder civil, representado pelo estado. A família é um santuário que representa o primeiro uso comum que o homem pode fazer de sua propriedade.

Concórdia de Classes

Em resposta ao marxismo, Leão XIII advogava que a luta de classes tinha que ser superada pela concórdia de classes, que começava pela própria economia. Ambas as partes precisavam entender que dependiam uma da outra para alcançar a prosperidade.

Desta forma, havia implícito em cada contrato de trabalho direitos e deveres por ambas as partes.

A concórdia traz consigo a ordem e a beleza; ao contrário, dum conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas selvagens.

Ao trabalhador competia entregar o que prometeu. Trabalhar com afinco e não usar de subterfúgios para fraudar seu patrão; ser honesto em suas atitudes e realizar o esfoço oferecido.

Ao patrão cabia pagar um salário justo a seu empregado, que o desse condições para se emancipar de uma vida de sobrevivência para uma de esperança para o futuro, de construção da prosperidade.

É importante entender que a Igreja colocava como um dado da realidade, como uma condição existencial do ser humano, as desigualdades de aptidões e capacidades. Essa desigualdade era absolutamente necessária para uma sociedade funcionar. Rejeitava, portanto, a idéia de que seria possível uma sociedade sem classes ou mesmo uma sociedade de iguais.

O primeiro princípio é que o homem deve aceitar com paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os socialistas; mas contra a natureza, todos os esforços são vãos.

Trabalho e propriedade

A encíclica chama atenção para uma verdade simples: o homem trabalha com o dobro da capacidade para sua própria propriedade. Torná-lo escravo de um salário é diminuir sua eficiência e com isso reduzir a possibilidade de produção de riquezas.

Seria do interesse dos patrões se seus empregados fossem donos de parte do capital investido, da própria empresa. Era contra o interesse dos próprios patrões reduzirem seus empregados ao menos salário possível pois a eficiência de todo o sistema era comprometido.

Leão XIII clama pelo pequeno negócio, pela empresa familiar. Para se proteger da concorrência por vezes desleal dos grandes, a solução era retomar a idéia de cooperativas de operários, não nos moldes da idade média mas de acordo com os novos tempos.

Não as cooperativas de operários controladas por socialistas, como existiam na época e eram constante fontes de revolta, mas de cooperativas irmanadas do espírito cristão e voltadas para a prosperidade de todos, o bem comum

O governo

A mensagem para os governos seculares é muito clara na encíclica. Os governos existem para os governados e não o contrário. O papa já se preocupava com a sem cerimônia com que os governos ganhavam poderes e se intrometiam na vida da pessoas, particularmente nas famílias.

Os governos deveriam ter como principais áreas de atuação a proteção dos direitos de propriedade e dos demais direitos naturais, dos trabalhadores e das famílias. Proteger o trabalho, evitando que o trabalhador possa ter suas forças exauridas pelo excesso de carga e os incapazes. Dar condições para que a Igreja possa fazer seu papel assistencial e aplicação da caridade.

A idéia da encíclica é de limitação do poder do estado e sua subordinação ao direito natural. Um governo que os violasse estaria desrespeitando a dignidade humana.

A economia como meio de conciliação de classes

O operário deverá receber um salário suficiente para não só atender suas necessidades de sobrevivência, mas poder poupar e formar um pequeno pecúlio que o permita adquirir um modesto patrimônio. O espírito de propriedade desenvolvido entre as massas populares é fundamental para gerar os seguintes benefícios:

1) uma repartição dos bens de forma mais eqüitativa. A participação maior do povo na propriedade do solo levaria ao nivelamento do abismo que separa a opulência da miséria, o que aproximaria entre as duas classes;

2) a terra produzirá em maior abundância, pois o homem produz mais quando o faz sobre sua própria propriedade;

3) suspensão dos movimentos de emigração pois o homem se fixaria à sua terra pois encontraria nela os meios para levar uma vida mais tolerável.

Leão XIII faz um alerta, válido ainda mais nos dias de hoje. A propriedade particular não poderia ser tragada por um excesso de encargos e impostos. A sobrecarga nada mais era do que um limitador à propriedade privada. O poder público pode regular e conciliar seu uso como o bem comum e não abolir sua posse por meios indiretos.

A solução definitiva: a caridade

A encíclica termina com a reafirmação dos princípios das cartas paulinas: fora da caridade não há salvação.

Os arranjos racionais de uma filosofia econômica e política seriam sempre insuficientes para resolver os problemas sociais do homem. Apenas a aplicação das leis reveladas por Cristo seriam capazes de ordenar com harmonia a sociedade.

Tudo se resumiria, portanto, na aplicação da lei maior trazida por Jesus, a da caridade.

Válida para os dias de hoje?

Em 1891, ano em que foi publicada, o mundo ainda era essencialmente agrícola. Algumas cidades industriais, na Europa e nos Estados Unidos, já despontavam e os movimentos de emigração para estas cidades eram intensos. Sem condições de sobreviver no campo, formava-se uma massa de operários nestas cidades, dispostos a trabalhar por qualquer salário. Praticamente sobreviviam.

Muito mudou para o ano em que vivemos. O mundo não é mais rural como antes, especialmente nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Mas acredito que os princípios colocados por Leão XIII continuam válidos. A concentração da propriedade nas mãos de alguns é ainda mais nocivo do que a concentração de riquezas. Um trabalhador que recebe salário apenas o suficiente para sua sobrevivência, que não possui capacidade para poupar e poder ter uma propriedade, mesmo que seja parte da empresa que trabalha, não é um homem livre, mas um escravo.

Não se imagina que um grupo de agricultores familiares conseguiriam produzir mais do que uma grande fazenda com uso intenso de tecnologia, por mais que se dedicasse com mais intensidade ao seu trabalho, mas não seria possível que esta mesma fazenda fosse uma cooperativa? Que sua propriedade fosse pulverizada a todos os seus trabalhadores?

O mesmo pensamento vale para as indústrias, os grandes negócios. A mensagem da encíclica é que o menor é melhor. Talvez a produção fosse menor, os produtos mais caros, mas seria isso necessariamente pior para a sociedade?

São questões que permanecem válidas ainda nos dias de hoje. Talvez com mais importância do que antes.

Um comentário sobre “Rerum Novarum, a doutrina social da Igreja Católica

  1. A industrialização foi, sem dúvida, uma evolução. O problema surge nas práticas para garantir a prosperidade industrial.

    Excelente o texto. Parabéns! Recomendo.

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