Demian – Herman Hesse

Sinclair é um jovem que luta contra uma visão maniqueísta da vida. A dualidade entre o bem e o mal se coloca para ele desde as primeiras páginas, quando coloca a oposição entre uma vida luminosa, da virtude, representada por suas irmãs, e um outro mundo, escuro, dos pecados, que o tenta a todo instante.

Sua primeira queda se dá com o encontro com um valentão de sua aldeia. O que começa por uma simples mentira (uma mordida de maçã?), termina como um mergulho em uma série cada vez maior de delitos. O caminho que o levaria à perdição completa é interrompido pela a chegada de um novo habitante, o Demian do título.

Depois de afugentar o valentão, Demian passa a ser uma espécie de guia para Sinclair, introduzindo-o em questionamentos existenciais e religiosos. A simbologia da Bíblia é colocada em questão, assim como sua relação com a vida.

Afastado de Demian, em um colégio interno, Sinclair se entrega a uma vida sem limites, entregando-se ao vício do jogo e da bebida. Curiosamente mantém-se afastado das mulheres, colocando-se distante da tentação erótica. Até que conhece um novo guia e posteriomente volta a se relacionar com Demian.

A jornada de Sinclair é uma alegoria da própria narração bíblica. A curiosidade que leva à perdição e depois à redenção. Há elementos de mistério na narrativa, especialmente quando se refere a Demian (nome sugerstivo?) e sua mãe.

O tema do livro é principalmente a existência do homem e sua transcendência. Qual o papel do indivíduo no concerto do mundo? Sua insignificância fica ainda mais evidente com a chegada da I Guerra Mundial, assim como o pessimismo que carregou consigo, acabando com a era de ouro da juventude européia.

Sinclair é um jovem perdido, assim como tantos que se relacionam com ele. Em algum momento uma existência movida por ideais se perde entre uma geração e outra; e o que resta é uma face escura da humanidade, onde o vício leva o novo homem para a solidão, abandono e falta de sentido para a própria existência.

A mão de Deus se faz mostrar no livro, através da providência divina, que mostra para Sinclair que é apenas através de si mesmo que encontrará o caminho para a verdade, tal como ensinou Cristo. Não é à toa que no momento de maior desespero, a simples imagem de uma moça, o fará retornar ao eixo de sua vida mostrando o verdadeiro sentido de milagre.

E Demian? Que papel desempenha no livro para ter o papel principal? Por que o livro não se chamou Sinclair? Esta é uma pergunta difícil de responder, que apenas posso especular. E possivelmente errar em cheio.

Demian, como o próprio nome diz, pode se referir ao tentador. Ao livrá-lo do valentão, institui uma dívida espiritual e moral de Sinclair para ele. Com sua voz mansa e cheia de sentidos, leva Sinclair a questionar tudo que julgava de mais sólido em sua vida, especialmente sua fé. Não é esse o papel do demônio? Não é através de uma imagem feia que ele surge para nos tentar, mas justamente com a imagem que estamos precisando. Com palavras suaves, com a manipulacão da razão.

Demian me parece a alegoria bíblica da tentação no deserto e Sinclair, o homem falho, sucumbe, sem perceber o alcance de sua queda. Apenas a conversão no sentido clássico, o voltar-se para si mesmo em busca da verdade, seria capaz de salvá-lo. E a nós. Mas teremos a coragem necessária para enfrentar a verdade? É a pergunta que ficou para mim ao terminar este breve, mas instigante romance, de Herman Hesse.

Complexo, não?

O Lobo da Estepe (Hermann Hesse)

Ainda tentando digerir o maravilhoso livro de Hermann Hesse, um dos nobel de literatura que honram o prêmio.

Escrito em 1927, conta a estória de Harry Heller, um intelectual de meia idade em crise existencial, revoltado com o mundo e com a vida burguesa. Por acaso, conhece uma jovem que aos poucos irá mudar a sua vida, tornando-se uma espécie de consciência que desnuda os absurdos das idéias de Harry.  Pelo menos essa é a primeira impressão do livro. Pelo menos até sua metade.

Talvez a maneira mais ligeira de ler o romance de Hesse seria de uma crítica à vida burguesa. É muito mais sutil do que isso, muito mais profundo. É uma monumental reflexão sobre a relação do intelectual com o mundo, sua revolta e sua paixão por um suposto ideal de pureza. Harry é um homem decepcionado com o mundo e que expressa sua revolta contra o que chama de vida burguesa, que considera limitada e mesquinha. Embora perceba algumas de suas próprias contradições _ afinal, por mais que lute, faz parte dessa mesma burguesia que critica _ coloca-se acima de tudo isso, quase como se fosse um gênio incompreendido.

Não por acaso o ápice de sua revolta se dá na casa de um amigo intelectual, que não via há muito tempo, mas que percebe acomodado ao tipo de vida que tanto despreza. Depois de uma explosão de fúria, entra em uma casa noturna onde conhece Hermínia. A jovem, uma cortesã de luxo, mostra-se muito mais sábia do que ele, mostrando como sua revolta é pueril e patética. De certa forma, aos poucos assume o comando de sua vida e inicia uma espécie de tratamento de choque, colocando-o diante da realidade do mundo, confrontando-o com a modernidade através da dança, do amor carnal com Maria, da vida noturna burquesa. Sem querer reagir, Harry vai se deixando levar, sempre acompanhado do seu alter-ego, o Lobo da Estepe.

Mas quem é o Lobo? No início do romance, com maestria, Hesse interrompe a narrativa para apresentar o Tratado do Lobo da Estepe, que mostra o Lobo como sendo a segunda alma aprisionada na alma do próprio Harry, uma alma que viveria acima da realidade mesquinha do mundo, aprisionada na sua personalidade principal conciliatória. Ali Hesse já mostra o problema da concepção de Harry sobre o Lobo da Estepe. A alma não se dividiria em duas, mas em milhares que habitam a mesma. Difícil dizer se está falando de almas, personalidades ou papéis sociais. Talvez tudo isso junto. O fato é que Harry tem a concepção de ter um lobo aprisionado querendo sair. É este lobo que surge na casa do amigo intelectual e que Hermínia recolhe de novo ao seu lugar de cativeiro.

Tudo se encaminhar para um grande baile a fantasia, onde Hermínia enfim permitiria que Harry se apaixonasse por ele. O baile acontece e depois que todos vão embora, surge Pablo, o músico e amante de Hermínia que o convida para entrar no Teatro Mágico, aquele que a entrada custa a razão.

Aviso: quem não quiser saber do final do romance, é bom parar por aqui! Até então tínhamos uma narrativa normal, uma estória bem contada e interessante, se decidir entrar no Teatro, saiba que perderá a razão!

A primeira leitura das páginas finais de O Lobo da Estepe é uma experiência que não vou esquecer tão cedo. De repente tudo fica de ponta cabeça e penetramos em um ambiente onde realidade, imaginação, sonho, alucinação; tudo se combina e se mistura em um calderão onde a denotação dá lugar á conotação. Li estas páginas sem tomar fôlego e ao final só podia me perguntar: o que foi isso? O que aconteceu nesse Teatro Mágico? Depois de um dia de perplexidade, sentei com um marcador de texto, um caderno da anotações e comecei a tentar desvendar sobre o que Hesse estava tratando.

Que eu tinha adorado, não tinha dúvidas. Mas adorado o que? O que era aquilo? O que foi que eu li?

Longe de mim ter a pretensão de decifrar o trabalho de Hesse, gente muito mais capacitada do que eu se dedicou a essa tarefa. Inclusive evitei ler qualquer crítica ao livro para não deixar me influenciar, embora esteja ávido para fazê-lo! Aliás, li o livro sem saber do que se tratava, quase que por um impuso. Sabia que era um dos clássicos da literatura moderna e foi o suficiente para decidir por sua leitura. O que pretendo nesse texto é simplesmente passar minhas reflexões e conclusões do que foi a experiência de ler O Lobo da Estepe.

Talvez a chave para compreender a experiência de Harry dentro do Teatro Mágico seja a constatação que sua doença começa pela sua inadequação ao mundo em que vive, algo muito comum no intelectual dos anos 20. A I Grande Guerra tinha deixado marcas muito profundas nesses homens, assim como a explosão do nacionalismo. Acreditavam que o novo conflito do mundo seria entre exploradores e explorados, uma derivação da luta de classes marxista. Jamais passara pela cabeça deles que, sob a bandeira da nação, explorados e exploradores lutariam do mesmo lado contra um inimigo também formado por exploradores e explorados. Profundamente desiludidos, esses intelectuais atravessaram a década de 20 revoltados contra uma ordem burguesa que se traduzia culturalmente pela era de ouro, simbolizada pelo rádio e pelo jazz.

As palavras de Pablo quando o introduz no Teatro Mágico são as pistas para entender a experiência que Harry viveria. Segundo Pablo, a realidade que Harry buscava já estava dentro de si mesmo. A jornada no teatro destinava-se a tornar esta realidade visível e com isso reconciliar-se com o mundo. Para isso teria de se livrar de sua personalidade. Deveria deixar a razão. Talvez Hesse se referisse ao racionalismo, à vã tentativa de entender o mundo e o aprisionar em um sistema coerente e explicável.

É aqui que começa o questionamento sobre o verdadeiro lobo da estepe. Até então imaginava que era a alma revoltada querendo aflorar. Mas e se fosse o contrário? E se o lobo fosse a personalidade de Harry, ou seu papel principal, que o impedia de abrir-se para o mundo e aceitar sua realidade. Pablo mostra a necessidade do humor, que só seria possível se Harry deixasse de se levar a sério. Em outras palavras, era preciso matar o lobo. Justamente o que Harry vê ao se olhar no espelho, seu riso o havia despido do Lobo da Estepe.

Mas talvez a grande pista para o que aconteceria a partir daí seja a advertência de Pablo: o Teatro Mágico tratava de símbolos.

Através de diversas portas, todas com um aviso acima, Harry penetra símbolos de suas várias personalidades. Começa sua jornada de auto conhecimento.

Simbolo 1: Montaria de automóveis.

Na primeira porta, Harry se vê em um mundo onde automóveis atropelam os pedestres, que reagem matando os motoristas. Trata-se de um símbolo que remete a aliança do homem com a tecnologia para dominar os outros homens, pelo menos na concepção de Harry. Ao lado de um amigo de escola, que se tornaria professor de teologia, começam a matar os motoristas. Trata-se do expurgo da verdadeira natureza do pacifismo radical de Harry, e de tudo que esconde. O mesmo pacifista estava disposto a pegar em armas se acreditasse estar lutando contra a ordem que oprimia o mundo; pior, poderia fazer isso por prazer.

A indiferença com as vítimas começa a incomodar Harry, mas o amigo argumento de sua necessidade; há muitas pessoas no mundo! No meio da loucura deles, algo de racional estava sendo feito. Há um genuíno desejo de destruição do mundo escondido sobre a capa do humanismo intelectual. Harry percebe que debaixo de sua máscara se esconde coisas muito mais profundas do que uma simples revolta contra à guerra, um verdadeiro desejo de destruição que terá que lidar.

Para Harry, e talvez para Hesse, os modelos americanos e bolchevistas nada mais eram do que simplificações grosseiras da realidade que na tentativa de ordenar a vida acabavam por violentá-la. A humanidade abusava de sua própria inteligência para, com auxílio da razão, tentar ordenar coisas inacessíveis ao próprio alcance da razão.

Símbolo 2: Guia para formação da personalidade

Em outra porta, encontra a imagem de um oriental, professor de xadrez. Para que possa ensinar Harry a formar sua personalidade pede as peças, que nada mais são do que as diversas pessoas que passaram pela vida dele. Essas peças formam a personalidade pois o homem não é uma unidade duradoura, mas formado por uma multidão de egos. Esses personagens poderiam ser reorganizados em vários conjuntos diferentes, família, amigos, amantes. Depois organizados novamente, formando uma nova personalidade. O que talvez o mestre estivesse tentando mostrar a Harry era que nós éramos responsáveis pela formação de nossas personalidades à medida que organizamos essas peças a cada jogo.

A ciência tinha certa razão ao afirmar que nenhuma pluralidade podia conduzir-se sem direção, sem uma certa ordem ou agrupamento. Mas errava ao afirmar que só havia uma ordem possível. Mais uma vez critica a simplificação das correntes ideológicas, que serviam apenas para facilitar o trabalho dos educadores, mas que careciam de verdadeira conexão com a realidade.

Símbolo 3: Doma do Lobo da Estepe

Agora Harry confronta-se consigo mesmo. Inicialmente domando o logo da estepe com um chicote; posteriormente sendo domado por ele. A inversão pode indicar que começamos criando nosso logo da estepe, ou de uma personalidade, ou papel, que filtra o que podemos ver do mundo. Posteriormente perdemos o controle dessa criatura e nos deixamos dominar por ele; nosso papel se torna nossa essência, mesmo que falsa.

Símbolo 4: Todas as Mulheres Sao Tuas

Temos aqui o símbolo do retorno à juventude, mas com a cabeça da velhice. Como seria fácil viver a juventude sabendo tudo que se sabe na velhice!

Dessa forma Harry se reencontra com todas as mulheres que atravessaram sua vida, desde o primeiro amor, não correspondido, de Rosa até chegar em Hermínia. Todos os nossos amores nos formam para chegar ao definitivo, ou ao atual, que por sua vez preparará para o próximo. Será o amor uma série infinita de amores? Ou esses amores farsas pois estão sempre sendo comparados a um ideal de amor perfeito inatingível, simbolizado por Rosa.

Harry percebe que sempre amou com parte do seu ser pois sempre esteve preso pelo lobo, que simboliza o papel de poeta, visionário e moralista. É preciso matar a personalidade para ser livre para amar de verdade pois amar é se anular diante de um ser amado.

Símbolo 5: Como se Mata por Amor

Hermínia tinha dito no primeiro encontro que o dia que Harry se apaixonasse por ela, teria de matá-la. Aqui cabe falar um pouco de Hermínia.

Se inicialmente parecia uma espécie de consciência para Harry, depois creio que se revela uma alma gêmea. Ela é seu oposto, que sofre do mal. Como Harry ela não se conforma com a realidade de seu mundo, embora consiga lidar com isso muito melhor do que ele. Talvez por isso soubesse tão bem o que Harry passava. Essa morte de Hermínia poderia se referir à sua personalidade. Não é por acaso que Pablo tenha conduzido os dois ao teatro e ela se mostrasse tão estranha quando Harry. Na verdade o tratamento era para os dois!

Para que pudessem se amar, não bastava matar o lobo da estepe, era preciso matar a personalidade de Hermínia!

Mozart aparece para Harry e inicia uma reflexão sobre o papel da arte; a beleza da simplicidade. O artista que pecava por excesso terminava por ser perseguido pelos resultados de sua obra. Mozart representava o ídolo, a personalidade que reunia o que um intelectual tinha como símbolo da perfeição.

Esse símbolo talvez seja o mais difícil de tentar entender, uma espécie de preparação para o símbolo decisivo.

Símbolo 6 (ou continuação do 5): Pablo e Hermínia

Não há nome nesta porta. Nenhum aviso. Harry caminha para encontrar Hermínia e Pablo dormindo juntos.

Com um punhal mata a moça. A personalidade de Hermínia precisava morrer para que pudessem viver.

E Pablo? Seria o lobo da estepe de Hermínia? Sua ligação com a personalidade que precisava se livrar?

Entra Mozart novamente que monta um rádio e para horror de Harry começa a escutar música popular. Mostra que um verdadeiro artista tem que aprender a “ouvir” as manifestações culturais pois em cada uma delas se escondia uma raiz de arte autêntica. O orgulho de um artista era um obstáculo para se relacionar com o mundo. Isso vale para o próprio papel do intelectual. Nada vale se considerar acima das pessoas normais, da burguesia. É preciso saber ouvi-las para ver que por baixo de muitos espetáculos grosseiros ou banais se esconde nuances de profundidade, talvez os próprios valores que sejam tão caros ao intelectual.

Símbolo final: a Execução de Harry

Pelo crime de matar Hermínia, ou sua personalidade, Harry é condenado a pior das penas: a vida eterna.

Talvez muitos considerem que a jornada de Harry termine em morte, na perdição. De minha parte vejo como uma jornada de redenção. Iniciava talvez um caminho de reconciliação com o mundo, de morte definitiva do lobo da estepe. Harry enfim estaria livre para viver e aprender a rir. A vida se abria para ele, seja com Hermínia ou não.

conclusão

Dizer mais o que? Obra de GÊNIO!!!

Sei lá o que Hermann Hesse queria passar. Muitas vezes um autor atira em uma direção e acerta em outra, quer mostrar uma tese e mostra o oposto. Isso acontece muito porque muitas vezes há um conflito entre ideais e realidade. O problema, ou a sorte, é que os grandes escritores possuem uma sensibilidade espetacular para retratar a realidade, embora muitas vezes não a compreendam. O pequeno livro de Hesse é grandioso porque mostra aspectos da realidade da condição humana, sejam quais forem as teses para estes aspectos. O Logo da Estepe por si só coloca Hermann Hesse como um dos grandes da Literatura Mundial. Para sempre.