Existem diversas interpretações para “A Metamorfose” de Kafka. Muitas partem da constatação que o estranho episódio de Gregory Samsa, que inicia o livro recém transformado em um inseto, é uma alegoria que pode significar muita coisa. Pode ser uma doença terminal de um membro da família, um crime cometido que transforme esse membro em criminoso, uma mudança brusca que mude sua condição; enfim, não há limites para a imaginação.
Lendo as páginas desta obra Kafka escreveu aos 29 anos, algo me soou estranhamente familiar mas não soube precisar exatamente o que. Refletindo, cheguei a conclusão que essa alegoria estaria baseado em alguns pontos:
- Algum membro da família sofre uma brusca transformação;
- essa transformação o deixa irreconhecível;
- de provedor da família, se torna um peso que deve ser sustentado por todos;
- a família nutre alguma esperança que volte a ser o mesmo de antes;
- a família reduz o contato ao mínimo e não quer expô-lo na sociedade;
- esse membro que sofreu a transformação não questiona seu estado, acha tudo muito natural;
- finalmente, convencido que esse estado é irreversível, desejam sua partida por não reconhecer mais na criatura o membro perdido.
Baseado nessas idéias, procurei algo que se encaixasse nesse esquema mental. Que transformação alguém poderia sofrer para gerar este estado de perturbação no seio de uma família? Uma das respostas possíveis me ocorreu de imediato: a ideologia. Seu principal exemplo, o marxismo, mas serve o nazismo tamanho a semelhança entre eles.
Imaginem uma pessoa da família que de uma hora para outra se converte _ e uso esse termo sem metáfora _ ao credo marxista. Passa a repudiar todos os valores que foram cultuados em seu lar, em sua sociedade. Fala coisas estranhas sobre teoria do mais valia, luta de classes, dialética materialista, teoria do valor-trabalho. Como Gregory, o que lhe parece claro é para sua família incompreensível. Suas roupas, seu modo de vestir, barba, talvez até a falta de banho, tudo contribui para que não o reconheçam mais. Onde está aquele filho, aquele irmão?
Passa a gritar contra a exploração do homem pelo homem, muitas vezes abandona o emprego burguês e se recusa a fazer parte da sociedade. A família tem que sustentá-lo enquanto aguarda que retome o juízo. Tentam não contrariá-lo, mas não desejam que apareça na sociedade, querem escondê-lo. Esse membro, por seu lado, não vê nada de errado com sua transformação. No fundo, como Gregory, continua a mesma pessoa, pelo menos acredita assim. Passa a ter gostos diferentes, se comportar de outra maneira, mas nada que não seja adequado à sua nova condição.
A família sofre, quer vê-lo de volta. Depois de um tempo, se acomodam, começam a perder a esperança. Conversam em segredo, Gregory só consegue ouvir partes sussurradas e breves. Por fim, uma crise, um confronto. Passam a ter medo dele. É nesse momento que alguém da família, como a Greta do livro, levanta o ponto que todos temem em reconhecer: nosso erro foi achar que essa criatura é nosso Gregory. Não é. Gregory já morreu e quanto mais depressa nos convencermos disso, mais rápido poderemos prosseguir com nossas vidas. Precisamos nos livrar dele.
Essa narrativa aconteceu com muitas famílias ao redor do mundo, e pode se encaixar com muitas correntes ideológicas: marxismo, nazismo, totalitarismos de toda espécie, até mesmo o ateísmo militante. Quando um membro da família abraça uma dessas causas que limitam a capacidade do pensamento humano, e por consequência, a própria condição humana, a metamorfose está feita. Voegelin alertava que um dos problemas da ideologia é que seu mundo se torna extremamente limitado e tudo na realidade que não se encaixa no novo credo é excluído do mundo, como se não existisse.
A vantagem da vida real sobre a alegoria de Kafka é que alguns metamorfosiados acabam acordando e retomando o sentido de realidade. Outros levam seus delírios para o túmulo, passando o resto de suas vidas como insetos, rejeitando parte importante do que nos torna humanos.
Não sei se Kafka quiz dizer algo remotamente parecido com isso, mas que para mim faz todo o sentido, hora se faz!
De todos os fragelos da humanidade, naturais ou não, a ideologia socialista foi a pior de todas. Basta contar os cadáveres. E mesmo com tudo isso, sua força é tão poderosa, que há ainda uma multidão que consciente ou não a defende. Incapazes de romper a metamorfose que sofreram.