Asa de Corvo (Augusto dos Anjos)
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa…
Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!
È com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza…
É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte – a costureira funerária –
Cose para o homem a última camisa!
O poema trata da única certeza que temos na vida, a morte. Muitos filósofos já colocaram que o assunto mais relevante que temos para trarar em nossas vidas é justamente esse; tudo o mais deriva em torno da constatação que um dia morreremos.
Claro que muitas religiões colocam a morte como uma passagem, algumas inclusive são reencarnacionistas. Não importa. Pelo menos no que se refere à esta vida, a que estamos vivendo, todas sabem que morreremos. Pelo menos no sentido material do corpo. A questão da alma, se ela existe ou não, se é imortal ou não, é outra estória.
A questão da morte é tão importante que define o nosso comportamento durante toda nossa vida. E olha que a grande maioria de nós se recusa a pensar no assunto! As próprias ciências a colocam no máximo em um segundo plano, quase como se fosse uma supertição. O problema é que se colocarmos a ação humana como o centro das ciências, particularmente das sociais, e se a ação humana é em grande parte resultado de nosss crenças mais profundas em relação à morte, fica claro que temos um problema sério na abordagem dessas ciências.
Como falar de economia, por exemplo, sem levar em conta a ação humana e, portanto, da expectativa que temos em relação à morte? O simples fato de acreditar ou não em vida após a morte implica em como agiremos nas nossas decisões individuais. No entanto, economistas falam em taxas de juros, PIB, investimento, justiça social, quase como se o indivíduo não existisse ou que não tivesse vontade própria.
O mesmo acontece na sociologia, psicologia, história, etc. A ciência que lida diretamente com a questão da morte, que na verdade gira em torno dessa questão, é a religião. Ou teologia, nem sei. O fato é que ainda discutimos se deve-se ensinar religião quando talvez ela seja a questão central de nossas vidas, inclusive a decisão de não ter uma religião! (O que, por acaso, implica em ter uma religião, a da não religião).
Ser religioso é da essência do ser humano, ou seja, faz parte da nossa própria humanidade. Não é por acaso que o ateísmo tem todas as características de uma religião, assim como a ideologia. Pode-se revoltar o quanto quiser contra Deus, mas sempre haverá algo no seu lugar. A estória da humanidade é a estória da revolta e conciliação com Deus, ou seja, é a estória da religião em sentido amplo.
Por isso a questão de estudar ou religião é absurda. Tudo é religião! Tudo é teologia! A própria ciência só tem sentido quando aceitar o papel da religião no mundo, a de questão central da condição humana porque tem como base justamente a questão da morte. Qualquer pergunta que se faça sobre a morte, o que é, por que ocorre, o que significa, o que implica, só pode ser feita sob um ponto de vista religioso.
Note-se que não estou falando de religião como instituição organizada, nada disso. Estou falando de religião como aquele sentimento inato que nos relaciona com Deus, seja que tipo de relacionamento for, inclusive de rejeição. O próprio sentido de religião como religar inclui aqueles que rejeitam o criador pois só se pode religar o que foi perdido.
Para concluir, volto aos versos do poeta:
Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!
Por isso é tão importante para um ateu revoltar-se contra Deus. E inútil. É nosso destino viver junto a essa asa. É nosso destino conviver com a certeza de que vamos morrer.
É nosso destino viver à sombra de Deus.