Os Estados Unidos viviam a Grande Depressão quando Capra lançou mais este belíssimo filme, que aparentemente não parecia ter nada a ver com o assunto. Afinal, por mais de uma hora de projeção observamos Longfellow Deeds, um simplório que vivia em uma pequena cidade que subitamente se torna herdeiro de uma imensa fortuna e tem que lidar com todo tipo de interesseiro que deseja uma parte (ou todo) dinheiro que recebeu.
O que se vê é a inadequação de um homem que tem apenas o bom senso ao seu lado e uma Nova Iorque onde já predominava o sentido do urgência que os prazeres de uma vida essencialmente material pode levar o ser humano. As pessoas ao seu redor simplesmente perderam a capacidade de enxergar a bondade humana quando diante dela, como constata Bebe, uma repórter muito esperta, que para conseguir matérias para seu jornal consegue enganar Deeds fingindo ser apenas uma garota de interior procurando emprego.
Capra está muito certo quando mostra que uma pessoa praticando o bem consegue irradiar essa bondade para os que estão a sua volta, principalmente se estiverem com o coração aberto. É o exemplo de Cobb, um cínico assessor de imprensa _ sim, eles já existiam! _ que consegue mudar de uma total descrença no ser humano para uma fidelidade canina ao novo chefe. Com toque de mestre, Capra consegue que percebamos o momento exato onde isso acontece. Trata-se do instante em que cheio de ironia, Cobb mostra a Deeds a verdade sobre uma determinada pessoa e percebe a tristeza em seu semblante ao invés da raiva que está tão acostumado a ver na vida.
O mesmo acontece com Bebe. Como Cobb ela também é tocada pela natureza de Deeds e percebe isso quando tenta rir cinicamente de uma de suas tiradas e simplesmente não consegue. Naquele momento percebe que não era mais a mesma de antes, tinha recuperado, se é que um dia teve, um pouco de fé na humanidade.
Capra nos mostra o ponto que chegamos nesta sociedade moderna onde a simples aplicação do bom senso parece-nos tão esquisito e inacreditável. Afinal o que postulava Deeds? Que um homem que vive no interior, com todo conforto e que faz tudo que gosta, não conseguia ver o significado de alguns milhões de dólares. Que temos que ter responsabilidade pelo uso que fazemos do dinheiro, seja qual for a proporção dele. Que temos que ser doces com as pessoas de bom coração, mas duros com os aproveitadores. Que temos uma responsabilidade com os bens que temos a nossa disposição.
Na última meia hora, seu filme que já era belo mas um retrato individual de um homem em seu labirinto, adquire um alcance social e enfim a grande depressão entra pela porta da frente, escancarada, do conto de fadas de Capra.
Um fazendeiro coloca a questão incômoda: que direito temos de desperdiçar de forma inconsequente, sem a menor responsabilidade, o dinheiro que temos em nossas mãos quando ao nosso lado temos pessoas passando tanta necessidade como aconteceu nos Estados Unidos da década de 30?
Na verdade, Deeds representa em suas andanças por Nova Iorque, a teoria keynesiana em toda sua força, o motor da economia de Roosevelt. Poucos perceberam na época, e agora, que seu filme era uma grande crítica ao simples despejo de dinheiro na sociedade como forma de resolver os problemas sociais. Não é à toa que o advogado Cedar afirma no julgamento de Deeds:
If this man is permitted to carry out his plan, repercussions will be felt that will rock the foundations of our entire governmental system!
Observem que ele não clama que mudaria os fundamentos da sociedade, mas do sistema governamental! E que idéias eram essas?
Conceder 10 acres, uma mula, um boi e equipamentos para cada fazendeiro falido. Todos que conseguissem trabalhar na terra por 3 anos receberiam a posse definitiva. Trata-se nada mais nada menos que o distributismo que Chesterton defendia tanto, uma forma de ação econômica proposta pelos escolástico na idade média! Três alqueires e uma vaca. Em outras palavras, a economia local, o pequeno. Nem capitalismo, muito menos comunismo, eram capazes de produzir uma sociedade mais equilibrada onde os valores maiores, como justiça, poderiam prosperar. Vejam que Deeds não quer simplesmente distribuir dinheiro para se livrar dele, nem viver das glórias da filantropia. Quer usar o dinheiro com responsabilidade para ajudar realmente as pessoas, o que implica em muito trabalho. Este é o sentido verdadeiro da caridade. Não se trata de esmola, um contrato estava sendo assinado ali entre Deeds e cada fazendeiro, cada um tinha suas obrigações a cumprir.
Quase 80 anos depois, com o mundo desenvolvido passando por uma de suas crises periódicas, constato que pouco mudou no panorama mundial. Os governos, especialmente o americano, continua adotando as mesmas práticas keynesianas de Roosevelt, jogando dinheiro do helicóptero para “estimular” a economia.
Capra entendia que o máximo que o governo poderia fazer neste momento era não atrapalhar. Isso significava deixar o dinheiro nas mãos de quem tinha capacidade de realmente ajudar os que necessitavam, através de atividades produtivas, e não retirar dinheiro deles para os que não precisam.
Longfellow Deeds era um tipo realmente curioso. Armado com o bom senso, enfrentou uma sociedade que simplesmente não o compreendia pois não tinha capacidade de identificar os valores maiores que uma sociedade deve ter. Deeds nada mais fazia do que aplicar o amar ao próximo como mandamento máximo, com todas as suas consquências. Se a sociedade era incapaz de compreendê-lo, pior para ela!