O Amigo de Infância de Maigret
Georges Simenon
Todos os dias nos deparamos com o lugar comum que o agente público, ou mesmo o profissional em geral, deve ser impessoal no trato com as pessoas. O que pouco se comenta é na possibilidade de realmente ser impessoal nas decisões; de desligar as conexões afetivas que ligam o decisor ao objeto da decisão.
Será possível a completa separação da vida pessoal da profissional? Mais até, será que a tentativa de ser imparcial não termina por distorcer ainda mas a decisão?
Em O Amigo de Infância de Maigret, o comissário se depara com essas dificuldades e se angustia. Um crime acontece e um colega de liceu, Florentin, é o principal suspeito. Apesar das fortes evidências, Maigret exita em prendê-lo. Mas por que exita? Por que tem realmente dúvidas ou pela ligação afetiva com Florentin? E se resolver prendê-lo? É pelas evidências ou pelo rigor em ser imparcial?
Não que Florentin fosse um amigo, ao contrário, era incoveniente, um golpista nato. Mas esse conhecimento do passado não colocaria Maigret com uma pré-disposição contra ele?
Não há solução fácil para os dilemas de Maigret. Simenon coloca que a imparcialidade total é impossível pois o homem não é uma máquina capaz de desligar suas sinapses mentais, particularmente as afetivas, quando bem entende.
À medida que Maigret investiga, vai construindo conexões com todos os personagens, mortos e vivos, demais investigadores, juiz de instrução, etc. Nas reflexões de um auxiliar:
Maigret, durante uma investigação, se impregnava como uma esponja, de gente e de coisas, dos menores elementos que inconscientemente registrava.
Trata-se das reflexões de um escritor capaz de observar as nuances da alma humana, justamente o que separa os grandes. A frase citada resume magistralmente de forma compacta um dos aspectos da nossa existência, nossa interação com o meio que vivemos, que leva à cérebre formulação de Ortega Y Gasset, eu sou eu e minhas circunstâncias. Para Simenon, o processo de construção das ligações afetivas é incosciente e acontece quando, como uma esponja, nos impregnamos das situações, profissionais ou não, que nos deparamos no nosso dia a dia. Quanto mais nos dedicamos a um problema, principalmente os desafiadores, em busca de uma solução ou da verdade, mais nos tornamos parte dele. Isso acontece diariamente com médicos, advogados, engenheiros. A profissão impregna o pessoal; o pessoal interfere no profissional.
Não quero dizer que somos passivos, que é justo que nossas impressões e sentimentos pessoais interfiram em nossas decisões, principalmente quando afetam a vida de outras pessoas; mas que temos que ter essa consciência e nos orientar pelo desejo de realizar justiça em nossos atos, mesmo sabendo da impossibilidade. Afinal, a imperfeição é parte de nossa natureza.
Mais um belo livro de Simenon, um dos maiores observadores da natureza humana que já existiu, um escritor genial que ainda terá o reconhecimento que merece. Infelizmente sofre de um preconceito contra os escritores “policiais”. Como Chesterton, ele percebeu que o trabalho de detetive é talvez o elemento mais comum à todas as profissões e à natureza de nossa própria vida. Estamos sempre investigando, buscando as evidências para encontrar a verdade. O detetive apenas faz isso como um método e por isso é tão bom como ponto de partida para analisar a natureza humana.
Não é literatura menor, absolutamente. Nós é que muitas vezes somos menores e não conseguimos compreender como uma boa estória de detetive reflete a condição humana por excelência.